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As varas de marmelo

O segredo é a alma do negócio. A propaganda é a alma do negócio. Há uma contradição explícita nestas duas frases. Os carros estão sendo vendidos aos montões nas agências, sustentam as estatísticas. No entanto, as fábricas fazem propaganda exageradíssima dos seus modelos, nos jornais, nas revistas e na televisão. Cada uma diz que os seus carros oferecem vantagens que os demais não têm. E todas se calam sobre as mortes, os desastres, que eles provocam nas ruas e nas estradas. Já disse, e torno a repetir: não há nada mais obsoleto do que o automóvel. É o refúgio do individualismo feroz, o símbolo do capitalismo sem entranhas.
Outro dia, já bem tarde da noite, ouvi um estrondo na rua, diante da minha casa. Parecia que estavam arrombando o meu portão de ferro. Felizmente, não. Era um carro que, não sei como, deslizou em marcha-ré, em boa velocidade, e foi bater nas grades e no portão da casa do meu vizinho de frente. Parece que não havia ninguém dentro do carro. Provavelmente, ao estacionarem-no, deixaram de puxar o freio de mão. A barulheira causou certo rebuliço, mas logo tudo se acalmou. Olhei pela janela, e em seguida me desinteressei.
Recentemente, em Ribeirão Preto, fez-se uma corrida de carros, nas ruas. Em conseqüência, ruas e avenidas foram interditadas, o que naturalmente provocou transtornos para boa parte da população. Mas, propalou-se, aumentou em trinta por cento as vendas, nas casas comerciais. O que é mau para uns, é bom para outros.
Quando escrevo estas notas, vai iniciar-se o Campeonato Mundial de Futebol, e Dunga e a sua equipe tratam visitar e homenagear o ditador sanguinário do país onde se vai realizar a Copa do Mundo.
São contradições inexplicáveis, ou antes, injustificáveis. É que o futebol, que era a alegria do povo nos pés de Garrincha, virou um negócio.
A política, nas eleições e depois delas, também virou um negócio. Um negócio sujo, sujíssimo.
Falam em democracia. Que democracia, cara pálida?
Mas a estupidez não mata. Engorda.
Sustentam que aumentou, em muito, o número dos obesos. Nada tenho contra os gordos, e até me simpatizo com eles. Mas vejo, às tardes, sujeitos correndo pelas avenidas, para manter a forma, ou emagrecer. E todos gritam que o colesterol é um perigo. Pois vivam o colesterol e o torresminho, desde que não seja daqueles de quebrar os dentes.
Vai-se perdendo, ou já se perdeu de todo, o sabor da vida. Ela é um esforço, uma batalha, quando devia ser a pacificação e a serenidade.
Vejo nos carros de que já falei outra espécie de propaganda: “Eu pratico o ecosporte”.
Ora, meu caro, vá praticar o ecosporte na cama, com a sua mulher. Ou procure sempre um advogado, ou um odonto-cirurgião. Ou, por desencargo de consciência, um otolaringologista.
Outro dia, relendo as memórias da infância e da adolescência, de Vivaldo Coaracy, vi que ele contava que, no seu tempo de menino, vendiam-se, numa casa de comércio de Icaraí, varas de marmelo. As mesmas crianças, por ordem da mãe ou do pai, iam comprá-las, para serem surradas com elas. E antecipadamente já choravam.
O que nos está faltando são varas de marmelo. Todos as merecem. Também eu.

Anníbal Augusto Gama

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