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Sobrevivência

Este verbo sobreviver é muito expressivo: significa, bem pensado, “viver sobre”. Em idade avançada, que é o caso de “sobrevida”, o homem vive sobre o passado, sobre o que foi ou sobre o que fez. Está aposentado, quer dizer, recolheu-se aos seus aposentos, fechou a porta do quarto para estar só consigo mesmo ou poder ficar nu. Também se pode entender que sobreviver é viver das sobras.
Mas podia haver outro verbo, que seria subviver. Destinar-se-ia àqueles que não sobrevivem, mas, velhos, vivem uma “subvida”, enfermiços ou agônicos, arrastando-se, ou empurrados em cadeiras de rodas.
De vez em quando, vejo velhinhos ou velhinhas ser levados até à porta da casa, para tomar um pouco de sol. Parecem o passarinho do relógio cuco, que sai para bater as horas, horas atrasadas ou muito espaçadas.
Outro dia, os jornais publicaram o retrato do bailarino japonês, Kazuo Ohno, que acabava de morrer, aos cento e três anos. Era uma máscara feia, uma máscara horrorosa da própria morte.
Como dizia o poeta Drummond, “cansado de ser moderno, agora serei eterno”. Ele podia dizer isso, mas quantos podem?
Alguns anos atrás, achando-me na rua, com o meu cachorrinho, à beira da calçada, passou um carro a toda velocidade, quase me raspando os pés, e os jovens, que estavam dentro do veículo, gritaram-me: “Velho, por que você não morre?”
Pois que morresse a avó torta deles.
Há também a expressão, usada pelos médicos, de “doente terminal”. Os médicos pretendem ser eficientes, mas são cruéis. Os doentes terminais ocupam camas que deviam ser destinadas aos recuperáveis. Os doentes terminais já não o são.
Também há aqueles que são a favor do aborto legalizado e livre. Não querem saber se a criança, que está no ventre da mãe, lhes dá ou não o seu consentimento.
Acho uma barata, dentro da pia, lutando desesperadamente para sair dali. Não conseguia. Escorregava, tornava a cair, de costas, no orifício que a sugava. Um jato dágua, mais forte, levá-la-ia para o esgoto. Hesito. Deixo que outro faça o serviço.
Mas há vidas muito breves: a vida das borboletas. Como, porém, elas alegram a vida, palpitando as suas cores pelo jardim!
As tartarugas é que vivem muito, porque são frugais. E o meu papagaio Horácio, que está por aí com uns vinte e cinco anos, em plena mocidade, viverá até os sessenta.
Já os cachorrinhos dificilmente chegam aos dezesseis anos. É pouco. Um vizinho meu, passeia com o seu cachorrinho, que, já velho, está cego, com o pêlo ralo, e diabético. Só lhe resta algum faro, para cheirar a grama.
Fui pescar, numa dessas quintas-feiras, de teimoso que sou, ou por teimosia do meu amigo H.S., porque o dia estava muito frio. Já quase de noite, ao atravessar uma pinguela, carregando as varas e o saco da tralha, escorreguei e caí nas águas, afundando-me até o peito. Foi difícil, muito difícil, sair dali, porque, encharcada a minha roupa, pesava mais vinte quilos, e meus pés, com o meu esforço, afundavam-se mais na lama. Não fosse o meu amigo H. S. que, do barranco, do outro lado, me estender a mão, e permaneceria ali, agitando-me como a barata na pia. Mas afinal ergui-me, com o auxílio do meu amigo. O caso era para riso e alguns goles de cachaça, que fui beber logo em seguida.
Velho sem juízo, dirão.
Os velhos deveriam ser deixados à vontade, para resmungar, xingar, esbravejar e rir.
Rir de si mesmos e dos outros que pode ser que não cheguem à velhice, à sobrevida ou à subvida.

Anníbal Augusto Gama

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