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O galo já não canta

Esta noite, de madrugada, ouvi um galo cantar. Procurei-o, e não o achei. Ele cantava no meu sonho. Nos meus sonhos acham-se também os antigos quintais, que já não existem. Tudo agora está restrito a pequenos pátios empedrados, onde os galos não cantam, nem jantam. Daí também as enchentes na estação das chuvas, que não são absorvidas e provocam desmoronamentos, inundações e mortes. Os rios sujos transbordam e invadem as cidades. Sem plano diretor, sem fiscalização, constrói-se nas encostas dos morros, que desmoronam. E cada ano tudo piora. O que tem acontecido na cidade de São Paulo é um exemplo. Obras mal construídas, ou inacabadas, se enchem de água, como o Túnel da Justiça, onde até peixes foram encontrados. A especulação imobiliária está em toda parte e, em Ribeirão Preto, ela também está destruindo a cidade. Perto da minha casa há uma imobiliária com um cartaz de mau gosto e agressivo, com os dizeres: “Estamos de olho na sua casa”. Pretendem comprar e demolir as casas onde as famílias antes viviam, para no lugar erguer mais um edifício de vinte pavimentos. Mudem-se todos para o raio que os parta. E os raios também caem em Ribeirão Preto. Vejam o que virou a Avenida Nove de Julho. E não há reação, há conformismo. Se isto é progresso, limpo as mãos na parede.
Onde vou pescar regularmente há muitos galos e galinhas. Eles cantam o tempo todo. E muitos pássaros e árvores. Temo que, mais alguns anos, o lugar também acabe. Ribeirão Preto está chegando, ou já chegou a Bomfim Paulista, onde há um resto de cidadezinha do interior. Meu amigo H. S., que lá mora, que bote a barba de molho.
Enquanto isso, os ricos e ricaços se enclausuram em condomínios de luxo, cercados de altos muros, protegidos por fossos, guardas e cães ferozes. Não querem contato com nós outros. Talvez o mais duro seja o contato deles com eles mesmos.
Uma cidade que ultrapassa setenta mil pessoas (ou fogos, como antes se dizia), perde a noção da convivência. Também se dizia “setenta mil almas”. Já não há mais almas. Somos apenas corpos.
Os galos cantavam durante toda a minha meninice. As meninas cantavam de roda, nas calçadas. Hoje, elas desfilam, magríssimas, anoréxicas, nos palcos, exibindo vestidos estapafúrdios. E algumas mostram tatuagens, que eram reservadas para os delinqüentes.
Não sou preconceituoso, ou procuro não ser. Mas estas meninas estão sendo violentadas, estupradas, e têm carreira de apenas alguns anos. Logo serão substituídas por outras, como parafusos. E jamais serão mães de família.
Mas depois não venham chorar no meu ombro.

Anníbal Augusto Gama

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