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Livrarias

Se alguém tiver capital e quiser montar uma livraria, proponho-me como seu sócio. Tenho experiência de quase oitenta anos com os livros. Lendo umas páginas de um livro, sei se ele é bom ou não presta. Conheço o valor das primeiras edições, das velhas revista e dos almanaques. O comprador de livros, ou o eventual leitor, precisa ser bem informado e instruído e posso dar-lhe todas as informações necessárias. Uma livraria que não seja essas livrarias virtuais que estão por aí, nas quais os vendedores ignoram tudo. Sou capaz de falar horas e horas sobre um livro, o seu autor, os caminhos por onde andou. Sopeso um livro, examino a sua encadernação, as suas ilustrações, o seu papel, a sua arte tipográfica. Vou ao colofão (sabem o que é um colofão?), reconheço os autógrafos e as dedicatórias autênticas. Uma das curiosidades de alguns livros é a sua errata. Uma surpreendente errata veio num livro brasileiro em que o autor dizia antes: “enforcou-se na corda pendurada no umbral da porta”. A errata modificava o texto anterior: “cortou a garganta com uma navalha, de orelha a orelha”. As correções que Euclides da Cunha fez na primeira edição de “Os Sertões”, algumas raspando-os com a ponta de um canivete os erros tipográficas, outras rabiscando em cima, são surpreendentes. Os manuscritos de Machado de Assis revelam as modificações que ele fez nos seus romances. Machado não acrescia, mas cortava. E Graciliano Ramos? Graciliano tinha ao seu lado, sobre a mesa, uma garrafa de cachaça. Bebia um gole dela, enquanto escrevia e riscava, com o seu horror ao gerúndio. Clarice Lispector escrevia em pedaços de papel, para depois juntar tudo. Lima Barreto compunha em pedaços de papel de embrulho, e as suas obras eram antes uma barafunda. O trabalho que deu com “Vida e Morte de M. J. para decifrar-lhe a letra e arranjar o seu texto, é contado por que trabalhava com Monteiro Lobato, a quem foi o livro oferecido para publicação.
Uma livraria deve ser um lugar aconchegante, com, quadros nas paredes e objetos de arte. Um lugar onde se possa conversar horas e horas. Cada livro deve estar no lugar próprio, em companhia de outros com os quais tem afinidade. O que não impede certa confusão, aliás conveniente. Às vezes, um livro que durante anos e anos foi buscado e não encontrado, de repente se acha num vão qualquer. Essas surpresas fazem o encanto das livrarias, que são universos onde tudo pode acontecer.
Os bons leitores são longevos e têm muitas histórias para contar.
Também os melhores caixeiros das boas livraria são os fantasmas, pois eles estão em todos os lugares, a vigiar as obras raras, os alfarrábios. Além disso, como se sabe, eles são poliglotas.
De vez em quando, o livreiro recebe uma caixa, vinda de Paris, ou de Londres. Abrir essas caixas e descobrir os livros que estão dentro delas é um dos grandes prazeres da vida.
Eu estava na Livraria Civilização Brasileira, na Rua XV de Novembro, em São Paulo, em 1958, quando chegou ali, da França, algumas caixas de livros. Um dos caixeiros era meu amigo, e convidou-me a ver abrir as caixas. Dentro delas estava a coleção completa de “Causeries du Lundi”, de Sainte-Beuve, em dezoito volumes, que comprei imediatamente e que muitos anos depois mandei encadernar. A aquisição arruinou-me as finanças por três meses, e tive de sobreviver comendo creme de abacate, num boteco da Rua de São Bento.
Tenho por aí cerca de cinco mil livros, e de cada um posso contar a sua história.
A primeira edição de “Os Sertões”, disputei-a com o meu amigo Benedito de Sousa Falleiros. Morávamos juntos num mesmo quarto, na Rua Maria Teresa, mas ele foi mais esperto do que eu, ao despertar mais cedo, ler os jornais, e descobrir o sebo que estava vendendo tal edição. Quando fui para lá, ele já estava retornando, com o livro na mão.
Tirei a forra, algum tempo depois: antes dele, adquiri, numa livraria da Avenida São João, uma edição especial e única, de poucos exemplares, e nunca mais reimpreessa, do livro de contos de Graciliano Ramos, “Dois Dedos”.
Caçar livros é uma aventura prodigiosa, com a vantagem de que não é preciso espingarda. Espingarda precisamos para afugentar aqueles que nos vêm pedir livros emprestados e nunca mais os devolvem, ou os devolvem arruinados.
A minha proposta está de pé: ofereço-me como sócio de quem pretenda abrir uma livraria em Ribeirão Preto, que está precisando de uma verdadeira livraria.

Anníbal Augusto Gama

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